sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Respeitável público!


Respeitável Público!

O povo da minha cidade é alegre, bem humorado. Mas antes de tudo, é um povo cordato. Tanto é verdade que a praça central, lá onde ficava o coreto, a igreja matriz - dedicada a Nossa Senhora dos Andarilhos das Meias Rotas - o comércio, e onde também girava a vida social de nossa gente, com os passeios das famílias aos sábados à tarde, os namoricos dos jovens à base de sorvetes de massa, as quermesses das festas juninas, as guirlandas com pequenas luzes coloridas enroladas nas árvores para o Natal, tudo foi demolido, arrancado e terraplanado para dar lugar a uma imensa lona de circo. Houve até um princípio de indignação, de estupefação pela audácia dos mambembes, mas tudo ficou em alguns muxoxos e um ou outro nhé-nhé-nhé. E só. Sim, nosso povo é muito cordato.
E desfalecido o espanto inicial, nasceu a curiosidade daquelas gentes a querer saber o que o circo teria a lhes oferecer. Mas o circo, logo descobriu-se, pouco oferecia, e qual não foi a nossa surpresa ao tomar conhecimento de que o comparecimento aos espetáculos, diários, era obrigatório e pago. Bem pago. Ainda assim, e apesar de comentarmos inconformados a má nova - alguns bradaram impropérios e houve até quem brandisse os punhos fechados contra essa arbitrariedade - em um ou dois dias (gente boa essa nossa) toda aquela imposição foi devidamente digerida e o bom humor, a alegria e a felicidade tornaram-se a tônica novamente.
Mas ainda não havia acabado, isto é que não senhoras e senhores! O cúmulo da audácia dos mambembes foi nos notificar que os artistas do circo seríamos nós mesmos, à exceção dos palhaços, que eram os donos daquela farra. Todos os dias, inexoravelmente, seriámos nós a fazer mágicas, todas incríveis, admito, mas fastidiosamente repetitivas. Seríamos também  os domadores de feras; muita gente lá teve a cabeça arrancada pelos leões e tigres, mas como eu comentei outrora, éramos assaz cordatos e tudo sempre acabava bem. A turba até aplaudia as feras, ao fazer de refeição um mal-ajambrado e azarado domador. Todos nós, sem exceção - veja que curioso, nem sabíamos disso! - nos descobrimos excelentes equilibristas, operávamos verdadeiros milagres nessas lutas contra as forças da gravidade nas cordas bambas sob as lonas lustrosas, ajeitando-se como podíamos nos monociclos, com dois elefantes dependurados, um em cada ombro, lançando aos ares os vinte e tantos malabares, argolas e outras bugigangas, e mordendo com a boca uma colher de café com um ovo de avestruz baloiçando na pequena concha do talher.
Como eu havia dito, os proprietários do circo eram os palhaços. Eram eles que determinavam o quê, o quando e o como. Recebíamos diariamente pelo correio correspondência contendo um panfleto com a descrição dos números que seriam apresentados naquele dia, quem operaria como platéia e quem seria o artista da vez. Num desses dias tive folga - como eram desejadas essas folgas! - e foi com satisfação que me encaminhei para o espetáculo daquela noite como parte dos espectadores. A apresentação e as vênias de praxe foram feitas pelo mestre-de-cerimônia: "Respeitável público!", que anunciou como primeiro número - era sempre o primeiro - a algazarra orgiástica dos palhaços. Iniciada a apresentação, atentei para algo que até então não havia notado: de todos os palhaços o mais sem graça, o mais simplório, aquele que notadamente não passava de um reles amador era, justamente, o Tiririca...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Homem de Marte

Stanislaw Lem (1921 - 2006) foi um escritor polonês de ficção científica, filosofia e sátira. Seus livros já foram traduzidos para mais de 40 línguas e já venderam mais de 27 milhões de cópias. Ele talvez seja mais conhecido como o autor de Solaris, que já teve duas adaptações para o cinema: a primeira, russa, de 1972 e dirigida por Andrei Tarkovsky e a última, estadunidense, de 2002 e dirigida por Steven Soderbergh  e estrelada pelo ator George Clooney (aliás, ambas as adaptações são muito fracas, mas a estadunidense consegue ser infinitamente pior). Seus trabalhos exploram temas filosóficos, especulação em tecnologia, a natureza da inteligência, a impossibilidade da comunicação e do entendimento entre culturas alienígenas, o desespero acerca das limitações humanas e o papel da humanidade no universo. Há pouquíssimas traduções para o português de Portugal das obras de Stanislaw e no Brasil há apenas a tradução de Solaris, pela extinta editora carioca Sabiá, que saiu na coleção Asteróide, em 1971. Se houveram reedições dessa obra pela editora José Olympio (que comprou a editora Sabiá)  ou de outra editora, seja qual for, desconheço...

E por causa da escassez de obras desse autor em terras tupiniquins foi que acabei encontrando um sítio na Internet que publicou - sob permissão da família de Lem - um conto de ficção científica em língua inglesa: Homem de Marte. Decidi traduzir para o português esse conto e apresentá-lo aqui... aproveitem a leitura!

Homem de Marte
A rua chiava. O barulho dos Aerotrens, as buzinas dos carros, o barulho dos vagões em alta velocidade, o estalar dos semáforos e a agitação enorme de vozes humanas, tudo fervilhava no ar azul escuro, cortado em pedacinhos por colunas de luz de todas as cores e matizes. Como serpentes gigantes, multidões intermináveis deslizavam-se desse modo e ficavam, ao saturar a capacidade das calçadas, iluminadas pelas vitrines das lojas e pelas luzes das casas afundando no crepúsculo. O asfalto recém molhado sibilava sob centenas de pneus. Corpos sinuosos pretos e prateados de veículos alongados esvoaçavam, um após o outro.

Sem objetivo ou pensamento continuei andando, uma pequena partícula indivisível pressionada entre a multidão, deixando-me levar como uma rolha impulsionada pelas ondas.
A rua respirava, murmurava e roncava, encharcando-me com cascatas de luzes e rajadas de perfumes fortes de mulher, por vezes com a fumaça acre afiada de cigarros do sul, outras vezes com a doçura asfixiante de charutos misturados ao ópio. Letreiros de neon dos anúncios acendiam e apagavam freneticamente do alto dos edifícios, fontes esguichavam para cima, nuvens de foguetes e fogos de artifício piscavam loucamente, regando as cabeças da multidão com seus reflexos moribundos.

Passei por gigantescos portais cintilantes de luz, passei por lojas escuras, passei por colunas altíssimas de edifícios estranhos, encravados na movimentada massa multilingue de pessoas envolvidas em uma conversação perpétua, e ainda mais solitário do que em uma ilha deserta. Mãos nos bolsos, mecanicamente tilintei um par de moedas, a minha fortuna inteira.

Me encontrei na junção de três grandes avenidas, as bocarras de pedra que, adornadas por um mosaico regular espinhal de lâmpadas de rua, esticavam-se em um ponto distante com seus pescoços alongados pela perspectiva. Separei-me da multidão e fiquei na calçada.

Em ritmo com as luzes dos semáforos, ondas humanas arrastavam-se através da rua, como se ejetadas de uma comporta gigante de rio. Durante as mudanças de fase, motores de grandes automóveis urravam, uivavam e murmuravam, de vez em quando chiando um aviso com um apitar de freios. Trotando, um entregador empurra um jornal indesejado na minha mão; comprei-o para livrar-me dele, enfiei o jornal pela manga do casaco e me deixei ficar, contemplativo.

A multidão estava em constante mutação, mas apesar de tudo, sempre a mesma. A rua continuava a pulsar em ambas as direções, como uma goma de mascar passando por sua goela de asfalto, quer fossem pelotas de pessoas aglomeradas ou, então, as estruturas metálicas brilhantes dos automóveis.

Um vulto imenso, cintilante, destacou-se subitamente da fina tira de rua e parou bem ao meu lado com um silvo tranquilo de pneus. A janela esquerda frontal de um Buick enorme desceu e uma voz falou de dentro:

"Que jornal é esse?"

Uma mão vestindo luvas grossas de motorista apontou para a borda branca do jornal saindo da minha manga.

A pergunta, a forma, o significado foram todos altamente incomuns, mas a vida me ensinou a não ser surpreendido por coisa alguma, especialmente nesta imensidão metropolitana. Como eu mesmo não sabia o nome, puxei o jornal antes de responder:

"New York Times".

"E que dia é hoje? Que dia?" solicitou a mesma voz. Fiquei farto do jogo estúpido:

"Sexta-feira!" revidei, dando a entender que a conversa tinha acabado ali.

No mesmo instante a porta do carro abriu-se e a voz disse: "Entre, por favor."

Comecei a recuar.

"Vamos!" soaram as palavras com tal força que, apesar de tudo, obedeci.

Não me lembro de afundar nas almofadas macias; a porta fechou-se e bateu de uma só vez, como em um filme de gângster, e seguimos em frente e correndo rápido. As luzes da rua deram uma guinada, esticadas como guirlandas pulsantes - arrancamos em disparada.

Olhei em volta do automóvel. Estava escuro. Eu estava sozinho no banco de trás. À minha frente, em silhueta contra o traço mal iluminado do pára-brisa dianteiro, estavam dois homens corpulentos: o chofer e seu companheiro. Me pus a pensar. Dois dias de jejum forçado cobraram seu preço, mas não afetaram meu cérebro sobre o que quer que eu pudesse dizer. Ao contrário, a fome trouxe com ela uma certa frivolidade, para não dizer um elevado senso de indiferença, com que eu revi esses fatos extraordinários. Agora, onde diabos eu estava? O veículo tinha, evidentemente, entrado em uma rua mais lenta já que o motor começou a lamentar-se naquele tom elevado, monótono, característico de compressores em altas rotações quando o combustível ainda não chegou totalmente até eles. De repente - uma  curva brusca - os freios, pisados com força, guincharam. O carro trepidou algumas vezes, escorregou delicadamente para um desnível aberto, e parou.

As portas permaneceram fechadas. Apenas o motorista buzinou, curto, longo em seguida. Duas vezes ele apagou os faróis, depois acendeu as luzes de freio e, em seguida, apagou-as também. Esperamos imóveis na escuridão infernal.

"Que tipo de touro estúpido..." comecei, mas a voz saiu fraca, meus ouvidos ainda cheios do ruído do motor e do movimento. Exatamente no mesmo instante um quadrado de luz pálida apareceu diante do nariz do carro. O automóvel rosnou e andou um pouquinho à frente. De repente eu senti o piso afundar. Aha! - assenti - uma garagem subterrânea - e já estávamos lá.

As portas se abriram. O chofer mostrou-me o rosto, enorme, largo, maxilares e sobrancelhas salientes, a um só tempo ossudo e carnoso. Saí. Meus passos eram leves, o tapete naquela galeria subterrânea  abafava os sons. Alguns instantes depois uma porta lateral se abriu e eu estava olhando para uma pequena sala azul-marinho em que se sentavam cinco homens. Quando me viram, todos abaixaram as cabeças e permaneceram em silêncio, como se estivessem esperando por algo.

O menor, um personagem de meia-idade louro escuro com um rosto pálido e brilhante que parecia um pouco ruborizado, virou-se para a minha escolta.

"É ele?"

O chofer parecia assustado, hesitou, mas logo respondeu:

"Naturalmente".

O sujeito que fez a pergunta virou-se para mim e se aproximou até ficar cara a cara.

"Que dia é hoje?"

Eu respondi, desta vez corretamente, que era quarta-feira, e vi todo mundo se espantar. Por um momento pensei que estava cercado por lunáticos, mas, antes que eu tivesse tempo para me inquietar, o chofer atlético deu um passo adiante.

"Sr. Frazer - eu juro - disse sexta-feira. E estava segurando o New York Times, na esquina da quinta avenida".

"O que isso significa?" perguntou o rosto pálido. "De onde você é?"

"Chicago", respondi. "Agora, que tal a minha vez de fazer algumas perguntas
? Para quê esta convocação? E este passeio misterioso em elevador de carro?"

"Não se afobe", a voz gelada me cortou. "Não é a sua vez ainda. Antes, por que você disse a ele que era sexta-feira?"

Ocorreu-me que talvez eu estivesse lidando com excêntricos. A coisa deveria ser cooperativa e suave, eu li em algum lugar.

"Quando você pensa realmente sobre isso," comecei, "talvez seja realmente sexta-feira. Especialmente se você considerar o meridiano de Greenwich..."

"Pare com essa palhaçada, agora. Você tem a mensagem e os instrumentos?"

Fiquei mudo.

"Sim...", balbuciou o meu interrogador. "Bem, antes... antes... você vai ter que nos dizer quem te enviou. O que você esperava realizar. E quem lhe disse o que fazer para que você pudesse chegar aqui!"

No final ele estava quase sibilando, expondo os dentes, ainda mais brancos, ou melhor, mais pálidos que suas feições. Os outros ficaram imóveis, fixando-me com os olhos, nem ameaçadores, nem perturbados.
Aos poucos ficou claro para mim. Com certeza, esses não eram lunáticos. Não, o único lunático e idiota disparatado era eu e havia acabado de tropeçar em alguma conspiração vasta e sinistra.

"Cavalheiros", comecei, o meu tom jovial decididamente fora de lugar, mas prossegui, tentando olhá-los imperturbável. "Eu sou, isto é, era, um repórter do Chicago World... Por razões particulares, eu saí de lá um par de meses atrás... Eu estava procurando por um emprego, vim para Nova York. Estou aqui há algumas semanas, fazendo nada. E a maneira como eu cheguei aqui, permita-me dizer-lhes, foi estritamente acidental. Todo mundo tem o direito de possuir uma cópia do Times, não?"

"E responder à pergunta sobre o dia da semana ser sexta-feira, em vez de quarta... É isso mesmo?"

As palavras, pronunciadas pela primeira vez por um homem alto, magro, de óculos, me fez voltar-se para ele, mesmo tendo notado que a porta agora encontrava-se fechada. Contra ela inclinava-se o motorista do carro, seu rosto inexpressivo maciço como uma rocha. Sua figura preenchia completamente a saída de uma forma que não me agradou de todo. Ocorreu-me que não acreditavam em mim.

"Ouçam", comecei de novo "é apenas uma coincidência estúpida... Por favor, deixem-me ir embora... Eu não sei nada, não entendo absolutamente nada, nem sequer sei onde estou agora".

"É fato, você não entende nada",
disse lentamente o homem com o rosto pálido brilhante. "Mas você não pode sair daqui."

"Não agora? Então, quando?"

"Nunca".

Quando a palavra foi pronunciada, todos como que descontraíram. Estava acabado. Lentamente, ocupando o tempo, os outros quatro sentaram-se, acenderam seus cigarros em um pequeno candeeiro, enquanto eu os observava. Olhei com especial intensidade para seus movimentos, na sala iluminada, para o rosto do homem diante de mim, que me sentenciou. Deveria dizer alguma coisa? - pensei - pleitear, persuadir, entrar em detalhes? Explicar? Mas quando olhei para aqueles olhos de um azul pálido, como se esbranquiçados pela distância, entendi que as palavras seriam inúteis.

"Eu não entendo isto de jeito nenhum", eu disse, endireitando-me. Eu estava cansado e com fome. "Eu não sei por que deveria desaparecer. Ou para quê. Mas mesmo canibais alimentam suas vítimas... por favor. Estou com fome." Aproximei-me da mesa, tirei um cigarro do maço e o acendi no candeeiro.

Naquele momento, percebi que os homens entreolharam-se, depois, por sobre minha cabeça, para o sujeito que esteve me falando, como se fosse seu líder, e mais uma vez quedaram-se imóveis O chefe deu-me uma olhadela. Fingi indiferença. A porta ainda estava bloqueada pelo corpo maciço, cortando o acesso à maçaneta. Ele devia pesar uns 100 quilos e eu precisava dormir, descansar, me alimentar - resistência seria inútil.

"Por favor, dê-lhe algo para comer", falou o sujeito pálido "e cuide dele. E bem!"

Nesse momento, o corpulento chofer encolheu-se um pouco. Sem dizer nada, abriu a porta e acenou para mim.

"Boa noite, cavalheiros" eu disse, e o acompanhei.

A porta fechou-se batendo, e encontrei-me na penumbra do corredor.

No mesmo instante, fui tomado por duas mãos poderosas, houve apenas um clique, e senti o aço frio das algemas em meus pulsos.

"Então, é assim que você trata seus clientes?" Perguntei, sem levantar a minha voz.

O chofer e seu cúmplice, invisíveis na escuridão, não eram do tipo falador. Um deles revistou-me de forma eficiente e, não achando nada, deu-me um pequeno empurrão para a frente.

Achei que isso fora um convite para jantar. Após marcharmos na escuridão infernal por um bom minuto, meu guia parou tão de repente que quase bati num muro surgido do nada, aparecendo na frente do meu rosto. Um tinido maçante e as portas se abriram, um retângulo de luz.

A nova localidade parecia um cofre de banco, na verdade como se fosse a imagem de um cofre com todos os mistérios de um crime lido avidamente. Grandes portas de aço trovejaram atrás de mim e do meu acompanhante, afundando suas enormes garras nas ranhuras correspondentes do batente. A sala foi fortemente iluminada por uma lâmpada sem quebra-luz. Nas paredes,
tiras de  aço regularmente dispostas exibiam alças maciças e vários bloqueios. O único mobiliário que pude ver eram duas cadeiras baixas no piso de concreto ao lado de um tamborete de três pernas e uma mesa pequena. Estranhamente, tudo era feito de aço. Percebi isso quando o chofer empurrou o tamborete com sua perna, produzindo um som inconfundível.

Sentei-me, o chofer aproximou-se da mesa, levantou o tampo e tirou da gaveta exposta algumas latas de carne e um naco de pão branco comprido. Tirou do bolso um canivete imenso, selecionou a lâmina do seu agrado, fez uma abertura em uma das latas, depois com a mesma lâmina fatiou o pão. Por fim, ele apalpou os bolsos até encontrar a chave para as minhas algemas, uma vez que eu estava começando a me resignar com o fato de ser alimentado com as mãos atadas. Sentado na minha frente, seus olhos seguiram contemplativamente cada parte da refeição monótona, até que não houvesse mais nada na lata. Olhando para a lata seguinte - lagosta, e aprecio realmente lagosta - estendi minha mão: canivete. O rosto
maciço bronzeado do chofer esticou, provavelmente indicando um sorriso, em seguida, levantou a faca e abriu a lata ele mesmo. Tem medo de mim!, pensei com satisfação, uma vez que ele mediu por duas vezes o meu peso. Quando a segunda lata ficou vazia e limpa com crosta de pão, eu o encarei.

"Lei Seca"?

O motorista esticou novamente sua face, desta vez num gesto mais amplo, levantou o tampo da mesa e  retirou um frasco de
excelente conhaque. Pensei que ele faria as honras da casa, mas só retirou a rolha e colocou um copo na minha frente, que ignorei completamente. Uma boa dose de conhaque azeitaria minha máquina craniana. Parecia que eu estava em uma salmoura muito engraçada como um picles, e estava prestes a perguntar como eu poderia dormir um pouco neste hotel barato, quando um zumbido curto e baixo soou sobre a minha cabeça, repetido por três vezes. O chofer contraiu-se ligeiramente e disse:

"Vamos".

Hesitei, ele apenas recuou um passo e tocou num bolso suspeito acondicionado em suas calças.

"Nec Hercules", disse em voz alta, sorriu, e rendeu meus pulsos. Ele sorriu novamente, um pouco torto desta vez, abriu a porta e afundou na sopa preta do outro lado.

Devemos ter caminhado em outra direção para, em seguida, ele agarrar o meu braço e puxá-lo. Depois de um tempo, achei que estávamos prestes a descer um lance de escadas. Subimos. Logo fui capaz de detectar uma luz azul-clara que progressivamente se tornou mais intensa, em seguida um piso e um corredor amplo sem janelas iluminado por lâmpadas foscas quadradas embutidas nas paredes. O corredor terminava em uma porta tão larga quanto a distância entre as paredes. Quando alcançamos a porta, o motorista empurrou-me à frente. Ela abriu-se automaticamente, e igualmente fechou-se atrás de nós (ou atrás de mim).

Me encontrava em uma gigantesca biblioteca, esta foi minha primeira impressão. As paredes estavam cheias até o teto com livros. Havia escadas de livraria, mesas e luminárias, e no meio da sala uma pequena mesa redonda onde estavam sentados todos os sujeitos que eu já conhecia. Os óculos de quem havia falado comigo apenas uma vez, o sujeito alto e magro, grisalho em suas têmporas, brilhou em minha direção. Me aproximei.

"Estávamos falando sobre você", disse ele durante um tempo, devagar e silenciosamente. Parecia muito cansado. Me curvei um pouco e esperei. "Queremos acreditar em você... Nossas investigações mostram que, com toda probabilidade, você está dizendo a verdade..."

Fiquei boquiaberto, espantado. Que investigações? Estaria ele se referindo ao jantar
sem palavras com o chofer? Neste caso, avaliei, eles eram um bando patético. Parecia que eles não apreenderam minha perplexidade.

"Contra a sua vontade, você se meteu numa certa... em uma situação muito complexa." Podia-se ver que ele estava medindo cada palavra. "Uma coisa você precisa saber: você não pode deixar este lugar sendo a mesma pessoa que era antes."

Perspassou pela minha cabeça que talvez isto aqui fosse a sede de alguma
quadrilha fantasticamente sofisticada - ou talvez um comitê político - de fascistas ou algo parecido. Mas por que esses livros?

"Ou você nunca sairá, ou..." ele parou. Me olhou calmamente, mas eu podia sentir a tensão do mesmo jeito.

"Ou?" perguntei. E então para o sujeito que se manifestara antes: "Desculpe-me, você se importa
? Como vê, não posso usar minhas mãos, mas eu realmente gostaria de um cigarro."

Lentamente (o cara fazia tudo lentamente, era divertido e outras vezes assustador, ele era como um ator no palco), ele colocou um cigarro na minha boca e me deu um isqueiro. Pela segunda vez os outros trocaram olhares significativos.

"Ou você vai acabar com a gente", concluiu o homem de óculos. "E, a julgar pelas aparências, eu diria que é a maneira como vai ser."

"As aparências enganam." Eu também estava tentando falar mais devagar, não tanto para coincidir com o ritmo dele, mas para superar os vapores que, após o meu jejum prolongado, envolviam meu cérebro graças ao conhaque que eu tinha bebido durante o jantar. "Você pode me dizer o que é isso tudo?"

O homem pálido que, até aquele momento, permanecera em silêncio, levantou os olhos.

"Isso, é claro, você não pode saber" disse, num tom que soava quase apologético. Depois mais alto: "Mas por que se preocupar
? Seu trabalho é simples: fazer o que você disse e ficar calado."

Eu tenho que admitir, toda aquela conversa fez-me sentir-se estranho. Anteriormente, quando essas pessoas esquisitas me condenaram a desaparecer, ou em outras palavras, a morrer, eu estava ciente do desespero de minha situação, mas esta sequência de eventos encheu-me com força renovada. Contra a parede, um homem torna-se apático, indiferente. Mas dê-lhe o menor raio de esperança e sua força cresce a cem por um, os seus sentidos atingem níveis de pico e ele se transforma em um único músculo enrolado pronto para explodir em um esforço para salvar a própria vida. Isso é o que me aconteceu. Falando lentamente, em voz baixa, eu continuei a examinar ao meu redor, avaliando as distâncias pelos cantos dos olhos. Escapar...? Por que não? Nenhuma dúvida quanto a isso, era agora ou nunca. Eu poderia arrebatar o cinzeiro grande e arrancar a cabeça do chefe, mas isso seria estúpido. Melhor lançá-lo na grande luz elétrica que iluminava o salão. A questão era: havia apenas uma, ou mais lâmpadas dentro daquela esfera opaca? Tudo dependeria disso. E depois, lá estava a porta. A porta peculiar que abriu e fechou-se por si só. Minhas costas se voltaram contra ela, e eu não conseguiria nem dizer se ela possuía uma maçaneta.

"Você não deve fazer nenhuma pergunta" o homem com o rosto pálido e suado estava a falar sem pressa, com ênfase, retirando o cigarro de dentro do bloco ornamentado do cinzeiro de prata. Ele meneou uma nódoa invisível do punho da camisa e de súbito fitou-me com seus frios olhos azuis.

"Se você não se importa", eu sorri, encolhendo os ombros um pouco e arriscando uma espiadela pelo canto do meu olho. Maçaneta de aparência comum. "Parece-me, realmente deveríamos, em certo sentido..."

Um dos homens, que parecia totalmente desinteressado em nossa conversa, de repente, falou algumas palavras em uma língua desconhecida para mim. Elas soaram estranhamente guturais. Meu interlocutor se inclinou sobre a mesa e disse rapidamente e em tom baixo:

"Você concorda?"

"Com o quê?" Eu estava procurando ganhar tempo a todo custo.

"Você tem uma escolha, junte-se à nossa", ele hesitou (quase profissionais, pensei, isto não é uma gangue ou eles jamais agiriam assim) - "nossa organização, ou você se tornará inofensivo."

"Você quer dizer ficar refrigerado a baixa temperatura, não é mesmo?"

"Não", ele respondeu calmamente. "Não vamos matá-lo. Nós só vamos realizar uma pequena cirurgia que irá transformá-lo em um retardado mental, um idiota para o resto de sua vida."

"Tudo bem... E o que você quer que eu faça na 'organização'?"

"Nada de que você não seja capaz."

"Qualquer coisa contra a lei?"

"A lei de quem?"

Eu tropecei.

"O que você... a nossa, lei estadunidense...".

"Não há dúvida... de vez em quando", respondeu ele. Como se a um comando, todos eles sorriram levemente. Poderia-se dizer, máscaras de cera tornaram-se vivas por uma fração de segundo. Deliberadamente movi minha perna de tal sorte que, com um súbito torque, eu poderia chegar ao cinzeiro. Poderia arremesá-lo na lâmpada de mãos algemadas? Eu era um ginasta bastante bom. No mesmo instante o sujeito de óculos voltou-se para a espirradeira plantada em um
bonito vaso de jade ao lado da mesa e disse algumas palavras, nenhuma das quais foi audível. As portas se abriram para revelar o chofer, juntamente com seu cúmplice.

"Escoltem-no... para a cirurgia", ordenou o comandante. "E removam as algemas."

De Człowiek z Marsa. Copyright Stanislaw Lem. De acordo com o estado de Stanislaw Lem. Tradução para o inglês copyright 2009 por Peter Swirski. Todos os direitos reservados. Tradução para o português por Ricardo Reto, 2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Quadrinhos - XV

Para entrar no clima desta grande festa que são as eleições brasileiras.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Jogos de Tabuleiro - VIII


O jogo de que trato nesta postagem é o Liubo, de origem chinesa. Fiz uma tradução literal de um artigo de Jean-Louis Cazaux de 2003, que encontra-se neste site. Portanto, todos os créditos e imagens pertencem ao seu autor. Vamos ao artigo:

Jogamos Liubo noite passada!
Jean-Louis Cazaux

Um jogo misterioso
Jogos de tabuleiro, assim como espécies animais ou línguas humanas, podem extinguir-se. Exemplos de jogos de tabuleiro que desapareceram e cujas origens permanecem obscuras são numerosos. Entre estes, o jogo chinês Liubo é um dos mais intrigantes. Este jogo era praticado na antiga China, pelo menos no princípio da era Zhanguo, no século IV a.C. e até possivelmente desde o século VII a.C. Liubo é mencionado nos Analects de Confúcio, que viveu por volta de 500 a.C. Aparentemente era muito popular durante as dinastias Han (207 a.C. – 220 d.C.), quando os melhores jogadores eram bem respeitados e pertenciam a uma organização. O jogo depois desapareceu, provavelmente suplantado pela adaptação chinesa do Nard (um ancestral do gamão) vindo da Índia e da Pérsia quando os governantes Tang (618 – 907 d.C.) reabriram a Rota da Seda. A última referência data da era Song (antes de 1.162 d.C.), onde o Liubo era descrito simplesmente como um “jogo antigo”.

Evidências arqueológicas são escassas e existem algumas poucas referências literárias. O Gu bo jing (O livro do velho jogo do palito) da era Han tardia (23 – 220 d.C.) descrevia as regras do Liubo. Infelizmente este trabalho está perdido e seu conteúdo só é conhecido por referências posteriores. As regras originais não estão descritas em nenhum outro lugar. Especialmente intrigante é o tabuleiro, cujo padrão é encontrado em outros artefatos, como os famosos espelhos TLV, por exemplo. O significado cultural do tabuleiro é bastante conhecido e explicado, mas ele ainda resiste em expor qualquer pista sobre como poderia ser usado para jogar! Os leitores interessados no assunto estão convidados a ler a excelente reconstrução no artigo de Röllicke1 (1999), que utilizei para dar suporte a este artigo. Muitas outras teorias foram elaboradas para explicar que tipo de jogo o Liubo era. Murray2 (1951) não faz referência direta a ele pelo nome, mas parece evocá-lo com o Luk tsut k’i ou o Jogo dos Seis Homens, que apresenta uma grande semelhança com o Alquerque. Para muitos, Liubo é o precursor do Xiangqi, o Xadrez Chinês. Atualmente, muitos autores e especialistas, por exemplo Lhôte3 (1994), Parlett4 (1999) e Li5 (1998) acreditam, com razão, que Liubo era provavelmente um tipo de jogo de disputa com capturas.

Partindo do trabalho fundamental desenvolvido por estudantes, orientalistas e arqueologistas, este artigo apresenta tão somente o ponto de vista de um jogador. A proposta é simples: jogar o jogo. Proponho uma reconstrução especulativa das regras no mesmo espírito daquelas feitas para os jogos egípcios e mesopotâmicos da antiguidade. Apesar das regras resultantes serem totalmente artificiais, minha esperança era que elas pudessem nos conduzir a algumas observações interessantes. Meu primeiro passo foi construir um tabuleiro bem como as peças e palitos necessários. Depois, cada ponto das regras foi cuidadosamente testado em jogo. Surpreendentemente, os resultados deleitaram meus parceiros e a mim.

Equipamento
O tabuleiro é caracterizado pelo padrão TLV que também é encontrado nos espelhos de bronze da dinastia Han. Os Vs podem ser reconhecidos nos quatro cantos do tabuleiro. Os Ls são os ganchos no meio de cada um dos lados. Sua orientação parece sugerir movimento no sentido horário, como em muitos outros jogos de disputa, tais como o Pachisi inidiano, o Yut coreano e etc. Os Vs e Ls estão distribuídos na periferia e cortam-na em 12 segmentos angulares (qudao). Estes segmentos têm sido relatados com o sistema cosmológico shenggou e os fundamentos do calendário chinês. A este sistema também pertencem os eixos Norte-Sul e Leste-Oeste do tabuleiro. Os Ts rodeiam o grande quadrado central, e eles poderiam ser usados para indicar estações suplementares. O Fangyan, de Yang Xiong (53 – 18 d.C.) confirma que aquelas pedras eram movidas nos ângulos e segmentos de linha ao longo do tabuleiro. Além dos segmentos de linha, existem quatro pequenos círculos. Finalmente, a área central, a “água”, é reminiscência da Terra rodeada pelo céu com suas constelações. Esta era provavelmente a meta a ser alcançada.

Tudo isto fornece pelo menos 28 estações numeradas, distribuídas em volta do centro do tabuleiro mais uma estação extra no quadrado central. O número 28 possui grande ressonância astronômica uma vez que é a base para o calendário lunar bem como é o número de constelações zodiacais da China antiga. O tabuleiro também seria usado para adivinhação, como é o caso de muitos outros jogos de disputa em outras civilizações. Uma estaca de madeira foi escavada em Yinwan em 1993 apresentando um diagrama semelhante ao Liubo junto com um mapa de caracteres endereçados a alguns oráculos. Uma explicação completa do processo de adivinhação foi recentemente proposto por Zeng6 (1999). Apesar de não haver uma razão para que a sequência de movimentos seja idêntica entre o jogo e a adivinhação, o trabalho de Zeng joga um pouco de luz nas posições permitidas e os caminhos entre eles.


O material do jogo compreende dois conjuntos de pedras, ou qi – seis brancas e seis pretas – feitas de marfim, osso, bronze ou jade e seis palitos de bambú apresentando faces planas e chanfradas. Às vezes o material inclui um ou dois dados de complexos 18 lados como um alternativa aos palitos de bambú; 20 peças adicionais, os zishi qi ou “peixes”; e diversos bilhetes de contagem. Os bilhetes poderiam ser recompensas ganhas durante o jogo. A regra do peixe é menos clara – talvez fossem registros de captura, ou talvez fossem usados em um outro jogo de dados totalmente distinto. Optei por ignorá-los na primeira tentativa de reconstruir o jogo.

Está claro que o movimento não era determinado por um lance casual de todos os seis palitos. Ao contrário, os palitos eram arranjados em uma disposição reminiscente dos famosos hexagramas da filosofia Tao e do Yijing, ou Livro das Mutações. Estes hexagramas, feitos de seis linhas contínuas ou segmentadas, representando os princípios yang e yin respectivamente, são uma componente fundamental na astrologia chinesa.

Regras Sugeridas
1. O jogo é para dois jogadores. Um jogador fica com as pedras brancas e o outro com as pretas. Cada jogador começa com seis pedras à sua frente, deixando o tabuleiro vazio;

2. As pedras são movidas de acordo com o lance dos seis palitos, no qual cada lado plano representa yang e cada lado convexo representa yin. Os palitos são lançados e lidos em dois grupos separados de três;

3. Conta-se 3 pontos por yang, 2 pontos por yin e subtrai-se 5. Um modo equivalente é contar 1 ponto a mais que o número obtido de yang. Portanto, a contagem de pontos para um grupo de três palitos varia de 1 (tudo yin) a 4 (tudo yang);

4. É compulsório mover duas pedras a cada rodada, uma para cada grupo de palitos. Não é permitido mover a mesma pedra duas vezes, exceto se aquela pedra for a última controlada pelo seu dono;

5. Todas as pedras entram no tabuleiro no mesmo ponto (indicado pelo número 1 no diagrama acima). As pedras movem-se no sentido anti-horário do tabuleiro. A primeira contagem inclui o ponto 1 de partida. As pedras podem passar umas pelas outras;

6. Uma pedra que pouse exatamente em um dos dois pontos cardeais, “6” ou “11” podem, na próxima rodada, mover-se diretamente através do tabuleiro até o ponto cardeal oposto ao invés de continuar a seguir o circuito no sentido anti-horário: de “6” pode-se ir para “16” e de “11” pode-se ir para “1”. As pedras continuam a mover-se no sentido anti-horário após atravessarem o tabuleiro. A rota através do tabuleiro, incluindo o quadrado central e tomando-o como uma estação, conta apenas seis etapas, ao passo que o circuito completo conta 10 etapas, de modo que estes atalhos reduzem a distância de quatro etapas;

7. Se uma pedra pousar em uma estação já ocupada pelo opontente, a pedra inimiga é retirada do tabuleiro e devolvida ao seu dono. Ele terá que reintroduzí-la no tabuleiro novamente a partir da estação “1”;

8. Duas ou mais pedras do mesmo time podem ocupar a mesma estação. Entretanto, ambas serão retiradas ao mesmo tempo se uma pedra oponente pousar na mesma estação em que se encontrem;

9. Uma pedra que pare na estação central pode ser promovida a coruja, que será distinguida das demais deixando-a de pé. A cada jogador é permitida uma coruja de cada vez, de modo que pedras subsequentes entrando na estação central não serão promovidas a coruja enquanto a primeira pedra estiver nessa condição;

10. A coruja pode ser movimentada por um ou dois grupos de palitos. Os dois números devem ser jogados separadamente, e fica proibido mover a coruja para frente e para trás. A coruja pode mover-se no sentido horário ou anti-horário ou atravessar o tabuleiro em qualquer direção sem ter que pousar primeiro em um ponto cardeal e pode até mesmo girar em ângulos retos quando atravessar o centro;

11. Uma pedra oponente tomada pela coruja é retirada do jogo e mantida como sua prisioneira;

12. Se uma pedra oponente tomar a coruja, o dono da coruja perde o jogo de imediato;

13. O dono da coruja também perde o jogo se, após sua rodada, o oponente tiver 5 pedras no tabuleiro mesmo que nenhuma seja coruja;

14. Se a coruja do oponente tomar uma coruja, o jogo não está perdido. A coruja capturada é degradada, removida do tabuleiro e devolvida ao seu dono, que deverá reintroduzí-la como uma simples pedra;

15. Quando uma pedra completa sua volta e pousa ou passa pela primeira estação (“1”), ela permanece no tabuleiro e inicia uma nova volta. Neste momento um prisioneiro é libertado e devolvido ao jogador que completou a volta, que pode reintroduzí-lo no tabuleiro na rodada seguinte;

16. Um jogador ganha uma rodada extra imediata se o lançamento dos dois conjuntos de palitos der 1-1 ou 4-4 ou após completar uma volta completa com uma pedra ou depois de promover uma pedra a coruja;

17. Um jogador ganha a partida quando tiver as seis pedras do oponente feitas prisioneiras. Isto é considerado como uma larga vitória.

Comentários
Regra #2: assumindo que os palitos possam ser lidos três a três, eles formam dois trigramas. Isto explicaria a função do tablado auxiliar, a caixinha, geralmente representada ao lado do tabuleiro e entre os jogadores. Ele seria usado para arranjar os 2 conjuntos de 3 palitos. Esta combinação 2x3 de palitos oferece 2x8 = 16 possibilidades, o que se encaixaria com o dados de 18 faces que é conhecido como uma alternativa aos palitos. O dados possui 16 faces numeradas mais duas faces especiais como seus pólos, gravadas com ideogramas para funções especiais. As faces numeradas do dado simulam os lances dos palitos, apesar das probabilidades não serem exatamente as mesmas em ambos os processos.


Regra #3: este modo de contagem é completamente hipotético. Tentei ajustar o sistema de 3 e 2 pontos tradicionalmente empregado no processo de adivinhação do Yijing. As possibilidades variam de 1 a 4, com 1 e 4 sendo três vezes menos provável que 2 e 3. Para minhas regras funcionarem, é necessário ser possível tirar 1.

Regra #4: testes do jogo demonstraram que não é apropriado que uma única pedra mova-se usando os dois grupos de palitos.

Regras #5 a 8: o princípio de uma única entrada no tabuleiro é copiada do Yut, o jogo de disputa coreano, chamado de Nyout por Culin7 (1895), Murray (1951), Bell (1960) e seus seguidores. Minha intuição diz que o Yut poderia ter alguma conexão com o Liubo. Achei intrigante seu simbolismo astrológico comum, sua aparente função para adivinhação, o fato de que cada jogador possui o mesmo número de peças, como palitos, e sua proximidade geográfica. Além disso, o tabuleiro do Yut possui exatamente uma região central cercada por 28 posições que estão igualmente dispostas como nesta reconstrução. Pode ser uma coincidência e não estou dizendo que Liubo foi o ancestral do Yut. Pode ser exatamente o contrário, ou ambos podem ter surgido de um jogo ainda mais antigo.

Regra #9: é inspirada pelos comentários do poema Zhao hun no Chuci, por Hong Xingzu (vivendo sob a era Song), que comenta a introdução do Gubojing: “Quando uma pedra entra na água, ela se ergue e é chamada de coruja”8 (Fu, 1986). Existem outras interpretações para essa passagem, que não corroboram o modo como a coruja é obtida. Estas outras interpretações estão relacionadas ao uso do dado de 18 faces, onde a promoção da coruja é obtida por pura sorte. Entretanto, algumas coisas especiais ocorreram na “água central”, como “comendo peixes”, que provavelmente tem o significado de recompensa. Considero este modo de promoção como uma possibilidade válida. Além disso, torna o jogo interessante porque o controle do quadrado central torna-se essencial. Nenhum texto jamais mencionou mais de uma coruja por jogador, assim isto é uma proposição pela jogabilidade.

Regra #10: é lógica, e confirmada nos testes com o jogo, que a coruja possa mover-se mais facilmente que as pedras comuns a fim de capturá-las.

Regra #11: foi inspirada por muitas citações que levaram a um entendimento de que o poder da coruja estava em comer as pedras.

Regra #12: a coruja é tanto poderosa quanto frágil. Existem algumas alusões novamente. Por exemplo, no Han Feizi, diz-se que “ afim de ganhar, é preciso matar a coruja”. Essa é uma característica atraente do jogo. O dono da coruja possui uma óbvia vantagem, mas ele está sempre sob pressão, por vezes desistindo de uma captura se não puder colocar a coruja em segurança. Seria a coruja um modelo para o rei no Xadrez?

Regra #13: Esta é uma tentativa de ajustar comentários recorrentes, como este a seguir no Zhanguoce (Strategies of the arguing realms): “Se a coruja não for capaz de defender-se de cinco pedras oponentes, então ela perde”. Praticamente, isto significa que o dono da coruja, que está liderando a partida, deve prestar atenção desde o início do jogo. O perigo se aproxima rapidamente se ele capturar poucas pedras.

Regra #14: Nenhum texto dá suporte a esta regra, mas ela é necessária se quisermos que ambos os jogadores possuam uma coruja simultaneamente. Tal captura não pode encerrar a partida, haja vista que é mais fácil capturar uma coruja com outra coruja. Como resultado, observa-se que o jogo produz agradáveis mudanças de sorte. O primeiro jogador a promover uma pedra a coruja não possui uma vitória garantida, uma vez que é grande a possibilidade de seu oponente também conseguir uma coruja. As duas corujas nunca ficam juntas por muito tempo e o segundo jogador possui uma chance real de conseguir a liderança se for capaz de capturar a primeira coruja.
Regra #15: Esta é uma livre interpretação de uma passagem obscura dos comentários de Hong Xingzu, que faz referência a "dois peixes que retornaram". Meu entendimento é que as pedras capturadas seriam libertadas se algo fosse obtido. Essa coisa seria completar uma volta no tabuleiro: no Yen leiju (557-641) se diz que: "as pedras devem ter passado por todos os caminhos do tabuleiro para serem bem sucedidas".

Regra #16: Estas convenções são o resultado de extensivos testes com o jogo. Tornam a partida mais dinâmica.

Regra #17: Esta foi inspirada novamente pelo comentário de Hong Xingzu: "se numa partida se ganhou seis peixes, então aquela foi uma grande vitória". Minha interpretação é também fazer uma conexão direta entre os peixes ganhos e as pedras capturadas. Outro suporte para esta regra é lógico. Com efeito, a finalidade primária do jogo é capturar todas as pedras do oponente a fim de vencer a partida.

Conclusão
Que eu saiba, este conjunto de regras constitui-se na primeira tentativa publicada de uma reconstrução completa do Liubo. O resultado é um jogo pertencente à vasta categoria dos jogos de disputa, ou mais adequadamente, dos jogos de luta-disputa, já que o objetivo não é simplesmente vencer a partida mas efetuar capturas ao longo do percurso. As jogadas são variadas e não são simples porque há diversas maneiras de se ganhar ou perder.  Penso que isso seja plausível porque, se o método de jogar tivesse sido simples, não teria se perdido. Obviamente, a coisa toda é pura especulação, e o método real de jogar pode ter sido bem diferente. Por exemplo, as diversas reconstruções propostas para o Senet, ou o jogo real de Ur, são bem diferentes, ainda que tenham sido, todas elas, baseadas em argumentos sólidos. A reconstrução de Bell do Patolli9 Azteca (Bell, 1960) surge agora como algo totalmente sem sentido à luz do que é conhecido sobre a família Bul10 (Verbeeck, 1998).

Uma primeira observação, que me surpreendeu, é que é muito natural e sem esforço jogar no tabuleiro de Liubo. Eu esperava dificuldades na memorização das localizações das diferentes estações e possíveis caminhos porque, por anos, eu fiquei intrigado com as marcações geométricas, incapaz de ver qualquer padrão de jogo. De fato, tudo se torna claro tão logo se comece a jogar. Leitores duvidosos são encorajados a reproduzir meu experimento e julgar por si mesmos! Além disso, mostrou-se que é possível levar-se em conta, mais ou menos, muitas das pistas disparatadas das fontes literárias.

Independentemente de quão próximas estas regras se assemelham às regras originais, pode ser confirmado que o material do Liubo proporciona uma partida de disputa e luta bastante atrativa e agradável. Por fim, foi uma grande satisfação observar como jogadores da atualidade, completamente ignorantes da história e do significado do Liubo, divertiram-se com este jogo. Eu só posso desejar que o equipamento do Liubo possa ser em breve produzido para o prazer dos amantes dos jogos de tabuleiro.


 Nota do tradutor: recomendo o uso de palitos de 4 faces, quadrados, pintados alternadamente de branco (para representar o Yang) e de preto (para representar o Yin).

Referências bibliográficas
1 Hermann-Josef RÖLLICKE, « Von « Winkelwegen », « Eulen » und « Fischziehern » - liubo : ein altenchinesisches Brettspiel für Geister und
Menschen », Board Games Studies, n°2, 1999.
2 Harold James Ruthven MURRAY, A History Of Board-Games other than Chess, Oxford University Press, 1951, re-edition Oxbow Books, 2002.
3 Jean-Marie LHÔTE, Histoire des jeux de société, Paris, Flammarion, 1994.
4 David PARLETT, The Oxford History of Board Games, Oxford University Press, 1999.
5 David LI, The Genealogy of Chess, Bethesda, Premier Publishing, 1998
6 ZENG Lanying (Lillian L. TSENG), « Divining from the Game Liubo : An Explanation of A Han Wooden Slip », China Archaelogy and Art Digest,
« Fortune, Games and Gaming », Vol.4, n°4, October-December 1999.
7 Stewart CULIN, Korean Games : with notes on the corresponding games from China and Japan, University of Pennsylvania, Philadelphie, 1895,
re-edition, New York, Dover, 1991.
8 FU Juyou, “Lun Qin Han shiqi de boju, boxi jianji boju wenjing. In: Kaogu xuebao 1, S. 21-42, 1986. I had no access to the original source. I have
worked on a free translation of extracts kindly communicated by Thierry DEPAULIS. However the exploitation I made from that material engages
my responsibility only.
9 Robert Charles BELL, Board and Table Games from many civilizations, Oxford University Press, 1960 et 1969 ; re-edition New York, Dover, 1979.
10 Lieve VERBEECK, Bul : A Patolli Game in Maya Lowland, Board Games Studies, n°1, 1998.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Quadrinhos - XIV

Este quadrinho está participando da 8a. competição aberta de quadrinhos de Veles 2010 - Macedônia.


sábado, 28 de agosto de 2010

Vila Sésamo

Para quem lembra da Vila Sésamo, que começou a ser exibido no Brasil por volta de 1973, se lembrará certamente de algumas esquetes hilárias elaboradas pela equipe de Jim Henson, o genial criador dos Muppets. Entre elas, o vídeo abaixo, que não é a versão original mas uma refilmagem da década de 80:
Costumo chamar esse tipo de esquete "non-sense" de humor inteligente, em que não é necessário usar palavrões, chacotas maliciosas de duplo sentido, vexatórias ou discriminatórias. Apenas uma boa piada feita com música e fantoches, ambientada de forma ridiculamente engraçada. Para completar, o que não havia na versão da Vila Sésamo, os dois velhinhos impertinentes, que comentam:

- A questão é: o que é um Bana-banam?

Ao que o outro responde:

- A questão é: quem se importa?


sábado, 15 de maio de 2010

Jogos de Tabuleiro - VII


Para finalizar a abordagem dos jogos Tafl (vide aqui), apresento algumas variantes de tabuleiro e posicionamento das peças. As regras, tratadas no tópico anterior, são válidas também para estas variantes.

Hnefatafl, variante em tabuleiro de 11x11 casa
Alea Evangelii, variante em tabuleiro de 19x19 casas


Tawlbyund, variante em tabuleiro de 11x11 casas


Brandub, variante de 7x7 casas


Ard Ri, variante em tabuleiro de 7x7 casas


Tablut, variante em tabuleiro de 9x9 casas

sábado, 13 de março de 2010

Jogos de Tabuleiro - VI


Quero com esta postagem iniciar a apresentação dos jogos do tipo Tafl. O texto é de Michel Wolffauer,  livre tradução minha. Site do autor: http://www.knauer.org/mike/sca/classes/.

A família de jogos Tafl datam de antes de 400 D.C. Acredita-se que tenham se originado com os escandinavos e trazidos pelos noruegueses à Islândia, Bretanha, Irlanda e Gales bem como qualquer outro lugar para o qual tenham viajado. Por muitos séculos os jogos Tafl eram os preferidos dessas pessoas até que foram desbancados pelo Xadrez durante os séculos 11 e 12 de nossa era. Estes jogos não morreram no tempo, uma vez que existem registros de que ainda eram jogados até meados do século 18 (e obviamente são jogados até hoje). Muito do que sabemos sobre as regras dos Tafl vem de uma narrativa de 1732 da Lapônia.

A figura abaixo é a de uma imagem na pedra representando duas pessoas jogando Tafl. Esta pedra encontra-se em Ockelbo Runestone, na Suécia.

Os jogos Tafl são para dois jogadores e usam um tabuleiro quadrado cujos lados contêm uma quantidade ímpar de casas. Sabemos que eram jogados em tabuleiros de 7x7, 9x9, 11x11, 13x13 e 19x19. O jogo é arranjado com peças posicionadas dentro das casas do tabuleiro; o rei fica no centro, rodeado pelos seus defensores. Os atacantes posicionam-se ao longo das bordas do tabuleiro. Os dois exemplos abaixo mostram a disposição das pedras em um tabuleiro 7x7 (chamado Fitchneal pelos irlandeses) e em um tabuleiro 9x9 (chamado de Tablut pelos Finlandeses).

Tabuleiro 7x7



Tabuleiro 9x9

Nas duas figuras acima, a pedra com a letra K representa o Rei (King); as pedras brancas são seus defensores e as pretas os atacantes. Em tabuleiros maiores, o número de atacantes e defensores aumenta, mas sempre mantendo a razão de 2:1.

Nestas duas versões, um jogador controla o rei e oito defensores, e o outro jogador controla 16 atacantes. Os jogadores alternam-se nas jogadas movendo uma única peça por vez, sendo que o atacante inicia a partida. Cada peça pode mover-se por quantas casas desejar em linha reta, como a torre no xadrez. A casa central (onde o rei inicia a partida) é conhecida como trono. O rei é a única peça que pode permanecer no trono, ainda que outras peças possam passar por ela. O objetivo dos defensores é levar o rei em segurança para fora de uma das bordas do tabuleiro, ao passo que os atacantes tentam detê-lo cercando-o por todos os lados, ou por três lados e pelo trono. Uma pedra é capturada quando ficar entre duas pedras inimigas em uma linha reta. As peças capturadas são retiradas do tabuleiro. Capturas múltiplas são permitidas. O rei também pode participar na captura. Se uma pedra se move para uma casa entre duas pedras inimigas, ela não é capturada. Se o defensor criar uma ou mais aberturas para o rei escapar, eles devem anunciar as aberturas. Não anunciar as aberturas farão com que o rei não possa usá-las em sua rodada. O jogo termina quando os defensores conduzem o rei em segurança ou quando os atacantes capturam o rei.

Na figura abaixo temos um exemplo de captura de um defensor por dois atacantes:

Captura simples

Note que a pedra preta desloca-se para a casa vazia adjacente à que se encontra a pedra branca. Na outra extremidade já se encontra uma pedra preta. A captura retira a pedra branca do tabuleiro.

A figura a seguir ilustra um exemplo de uma captura múltipla:

Captura múltipla

Note neste exemplo que a pedra branca desloca-se para uma casa vazia, de modo que na linha horizontal temos uma pedra preta entre duas brancas e na linha vertica outra pedra preta entre duas brancas. As pedras pretas nestas condições foram capturadas e retiradas do tabuleiro.

Neste exemplo, vemos um movimento seguro, em que a pedra que se move não é capturada:

Movimento seguro de uma pedra

Como neste caso é a pedra branca que se move para uma casa entre duas pedras pretas, seu movimento é seguro e não sofre captura pelo adversário.

No exemplo a seguir, vemos o rei sendo capturado. Em qualquer das situações apresentadas, o rei não possui nenhuma possibilidade de movimento.

Captura do Rei
 
O método padrão de jogo dá vantagem ao rei e seus defensores; isso levou a diversas variantes com o intuito de equilibrar a partida (Nota: nem todas essas variantes equilibrarão a partida).

Escape pelo canto: ao invés do rei se deslocar para uma borda do tabuleiro, esta variante exige que ele se dirija a uma quina, à casa de um canto do tabuleiro. Pelo fato de que seria muito fácil aos defensores bloquear os cantos do tabuleiro apenas posicionando-se neles, estes espaços geralmente são tratados como tronos, e somente o rei pode neles permanecer (para o tabuleiro de 7x7, o arranjo deve ser diferente, de modo que não hajam pedras nos cantos logo no início da partida). Também o rei pode ser capturado por três atacantes se ele estiver cercado em uma linha limítrofe (sem espaço para haver um quarto atacante).

Trono hostil: pelo fato de que nenhuma outra pedra a não ser o rei pode permanecer no trono, posicionar uma pedra próximo ao trono oferece uma proteção adicional. Nesta variante tal pedra pode ser capturada ao se permitir que o trono, estando vazio, "participe" em uma captura por ambos os lados. Assim, uma peça posicionada entre o trono vazio e uma peça inimiga pode ser capturada. Uma regra adicional que pode ser incluída no jogo diz que uma vez que o rei tenha deixado o trono, não pode mais retornar a ele. Quando se joga pela variante escape pelo canto, as casas dos cantos também podem ser designadas como hostis.

Sem movimento seguro: nesta variante, uma peça não pode posicionar-se entre duas peças inimigas em sua rodada sem ser capturada. Este movimento pode ser considerado proibido ou a captura da peça que efetuou o movimento é automática. (Nota: se o movimento resultar na captura de uma ou de ambas as peças inimigas, então o movimento obviamente é permitido).

Movendo-se uma casa: no tabuleiro 7x7, esta variante restringe todos os movimentos a uma única casa por rodada.

Vamos lá, minha gente: bota o espetinho na churrasqueira, prepare os petiscos e os bebericos e vamos nos divertir um pouco!