sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Respeitável público!


Respeitável Público!

O povo da minha cidade é alegre, bem humorado. Mas antes de tudo, é um povo cordato. Tanto é verdade que a praça central, lá onde ficava o coreto, a igreja matriz - dedicada a Nossa Senhora dos Andarilhos das Meias Rotas - o comércio, e onde também girava a vida social de nossa gente, com os passeios das famílias aos sábados à tarde, os namoricos dos jovens à base de sorvetes de massa, as quermesses das festas juninas, as guirlandas com pequenas luzes coloridas enroladas nas árvores para o Natal, tudo foi demolido, arrancado e terraplanado para dar lugar a uma imensa lona de circo. Houve até um princípio de indignação, de estupefação pela audácia dos mambembes, mas tudo ficou em alguns muxoxos e um ou outro nhé-nhé-nhé. E só. Sim, nosso povo é muito cordato.
E desfalecido o espanto inicial, nasceu a curiosidade daquelas gentes a querer saber o que o circo teria a lhes oferecer. Mas o circo, logo descobriu-se, pouco oferecia, e qual não foi a nossa surpresa ao tomar conhecimento de que o comparecimento aos espetáculos, diários, era obrigatório e pago. Bem pago. Ainda assim, e apesar de comentarmos inconformados a má nova - alguns bradaram impropérios e houve até quem brandisse os punhos fechados contra essa arbitrariedade - em um ou dois dias (gente boa essa nossa) toda aquela imposição foi devidamente digerida e o bom humor, a alegria e a felicidade tornaram-se a tônica novamente.
Mas ainda não havia acabado, isto é que não senhoras e senhores! O cúmulo da audácia dos mambembes foi nos notificar que os artistas do circo seríamos nós mesmos, à exceção dos palhaços, que eram os donos daquela farra. Todos os dias, inexoravelmente, seriámos nós a fazer mágicas, todas incríveis, admito, mas fastidiosamente repetitivas. Seríamos também  os domadores de feras; muita gente lá teve a cabeça arrancada pelos leões e tigres, mas como eu comentei outrora, éramos assaz cordatos e tudo sempre acabava bem. A turba até aplaudia as feras, ao fazer de refeição um mal-ajambrado e azarado domador. Todos nós, sem exceção - veja que curioso, nem sabíamos disso! - nos descobrimos excelentes equilibristas, operávamos verdadeiros milagres nessas lutas contra as forças da gravidade nas cordas bambas sob as lonas lustrosas, ajeitando-se como podíamos nos monociclos, com dois elefantes dependurados, um em cada ombro, lançando aos ares os vinte e tantos malabares, argolas e outras bugigangas, e mordendo com a boca uma colher de café com um ovo de avestruz baloiçando na pequena concha do talher.
Como eu havia dito, os proprietários do circo eram os palhaços. Eram eles que determinavam o quê, o quando e o como. Recebíamos diariamente pelo correio correspondência contendo um panfleto com a descrição dos números que seriam apresentados naquele dia, quem operaria como platéia e quem seria o artista da vez. Num desses dias tive folga - como eram desejadas essas folgas! - e foi com satisfação que me encaminhei para o espetáculo daquela noite como parte dos espectadores. A apresentação e as vênias de praxe foram feitas pelo mestre-de-cerimônia: "Respeitável público!", que anunciou como primeiro número - era sempre o primeiro - a algazarra orgiástica dos palhaços. Iniciada a apresentação, atentei para algo que até então não havia notado: de todos os palhaços o mais sem graça, o mais simplório, aquele que notadamente não passava de um reles amador era, justamente, o Tiririca...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Homem de Marte

Stanislaw Lem (1921 - 2006) foi um escritor polonês de ficção científica, filosofia e sátira. Seus livros já foram traduzidos para mais de 40 línguas e já venderam mais de 27 milhões de cópias. Ele talvez seja mais conhecido como o autor de Solaris, que já teve duas adaptações para o cinema: a primeira, russa, de 1972 e dirigida por Andrei Tarkovsky e a última, estadunidense, de 2002 e dirigida por Steven Soderbergh  e estrelada pelo ator George Clooney (aliás, ambas as adaptações são muito fracas, mas a estadunidense consegue ser infinitamente pior). Seus trabalhos exploram temas filosóficos, especulação em tecnologia, a natureza da inteligência, a impossibilidade da comunicação e do entendimento entre culturas alienígenas, o desespero acerca das limitações humanas e o papel da humanidade no universo. Há pouquíssimas traduções para o português de Portugal das obras de Stanislaw e no Brasil há apenas a tradução de Solaris, pela extinta editora carioca Sabiá, que saiu na coleção Asteróide, em 1971. Se houveram reedições dessa obra pela editora José Olympio (que comprou a editora Sabiá)  ou de outra editora, seja qual for, desconheço...

E por causa da escassez de obras desse autor em terras tupiniquins foi que acabei encontrando um sítio na Internet que publicou - sob permissão da família de Lem - um conto de ficção científica em língua inglesa: Homem de Marte. Decidi traduzir para o português esse conto e apresentá-lo aqui... aproveitem a leitura!

Homem de Marte
A rua chiava. O barulho dos Aerotrens, as buzinas dos carros, o barulho dos vagões em alta velocidade, o estalar dos semáforos e a agitação enorme de vozes humanas, tudo fervilhava no ar azul escuro, cortado em pedacinhos por colunas de luz de todas as cores e matizes. Como serpentes gigantes, multidões intermináveis deslizavam-se desse modo e ficavam, ao saturar a capacidade das calçadas, iluminadas pelas vitrines das lojas e pelas luzes das casas afundando no crepúsculo. O asfalto recém molhado sibilava sob centenas de pneus. Corpos sinuosos pretos e prateados de veículos alongados esvoaçavam, um após o outro.

Sem objetivo ou pensamento continuei andando, uma pequena partícula indivisível pressionada entre a multidão, deixando-me levar como uma rolha impulsionada pelas ondas.
A rua respirava, murmurava e roncava, encharcando-me com cascatas de luzes e rajadas de perfumes fortes de mulher, por vezes com a fumaça acre afiada de cigarros do sul, outras vezes com a doçura asfixiante de charutos misturados ao ópio. Letreiros de neon dos anúncios acendiam e apagavam freneticamente do alto dos edifícios, fontes esguichavam para cima, nuvens de foguetes e fogos de artifício piscavam loucamente, regando as cabeças da multidão com seus reflexos moribundos.

Passei por gigantescos portais cintilantes de luz, passei por lojas escuras, passei por colunas altíssimas de edifícios estranhos, encravados na movimentada massa multilingue de pessoas envolvidas em uma conversação perpétua, e ainda mais solitário do que em uma ilha deserta. Mãos nos bolsos, mecanicamente tilintei um par de moedas, a minha fortuna inteira.

Me encontrei na junção de três grandes avenidas, as bocarras de pedra que, adornadas por um mosaico regular espinhal de lâmpadas de rua, esticavam-se em um ponto distante com seus pescoços alongados pela perspectiva. Separei-me da multidão e fiquei na calçada.

Em ritmo com as luzes dos semáforos, ondas humanas arrastavam-se através da rua, como se ejetadas de uma comporta gigante de rio. Durante as mudanças de fase, motores de grandes automóveis urravam, uivavam e murmuravam, de vez em quando chiando um aviso com um apitar de freios. Trotando, um entregador empurra um jornal indesejado na minha mão; comprei-o para livrar-me dele, enfiei o jornal pela manga do casaco e me deixei ficar, contemplativo.

A multidão estava em constante mutação, mas apesar de tudo, sempre a mesma. A rua continuava a pulsar em ambas as direções, como uma goma de mascar passando por sua goela de asfalto, quer fossem pelotas de pessoas aglomeradas ou, então, as estruturas metálicas brilhantes dos automóveis.

Um vulto imenso, cintilante, destacou-se subitamente da fina tira de rua e parou bem ao meu lado com um silvo tranquilo de pneus. A janela esquerda frontal de um Buick enorme desceu e uma voz falou de dentro:

"Que jornal é esse?"

Uma mão vestindo luvas grossas de motorista apontou para a borda branca do jornal saindo da minha manga.

A pergunta, a forma, o significado foram todos altamente incomuns, mas a vida me ensinou a não ser surpreendido por coisa alguma, especialmente nesta imensidão metropolitana. Como eu mesmo não sabia o nome, puxei o jornal antes de responder:

"New York Times".

"E que dia é hoje? Que dia?" solicitou a mesma voz. Fiquei farto do jogo estúpido:

"Sexta-feira!" revidei, dando a entender que a conversa tinha acabado ali.

No mesmo instante a porta do carro abriu-se e a voz disse: "Entre, por favor."

Comecei a recuar.

"Vamos!" soaram as palavras com tal força que, apesar de tudo, obedeci.

Não me lembro de afundar nas almofadas macias; a porta fechou-se e bateu de uma só vez, como em um filme de gângster, e seguimos em frente e correndo rápido. As luzes da rua deram uma guinada, esticadas como guirlandas pulsantes - arrancamos em disparada.

Olhei em volta do automóvel. Estava escuro. Eu estava sozinho no banco de trás. À minha frente, em silhueta contra o traço mal iluminado do pára-brisa dianteiro, estavam dois homens corpulentos: o chofer e seu companheiro. Me pus a pensar. Dois dias de jejum forçado cobraram seu preço, mas não afetaram meu cérebro sobre o que quer que eu pudesse dizer. Ao contrário, a fome trouxe com ela uma certa frivolidade, para não dizer um elevado senso de indiferença, com que eu revi esses fatos extraordinários. Agora, onde diabos eu estava? O veículo tinha, evidentemente, entrado em uma rua mais lenta já que o motor começou a lamentar-se naquele tom elevado, monótono, característico de compressores em altas rotações quando o combustível ainda não chegou totalmente até eles. De repente - uma  curva brusca - os freios, pisados com força, guincharam. O carro trepidou algumas vezes, escorregou delicadamente para um desnível aberto, e parou.

As portas permaneceram fechadas. Apenas o motorista buzinou, curto, longo em seguida. Duas vezes ele apagou os faróis, depois acendeu as luzes de freio e, em seguida, apagou-as também. Esperamos imóveis na escuridão infernal.

"Que tipo de touro estúpido..." comecei, mas a voz saiu fraca, meus ouvidos ainda cheios do ruído do motor e do movimento. Exatamente no mesmo instante um quadrado de luz pálida apareceu diante do nariz do carro. O automóvel rosnou e andou um pouquinho à frente. De repente eu senti o piso afundar. Aha! - assenti - uma garagem subterrânea - e já estávamos lá.

As portas se abriram. O chofer mostrou-me o rosto, enorme, largo, maxilares e sobrancelhas salientes, a um só tempo ossudo e carnoso. Saí. Meus passos eram leves, o tapete naquela galeria subterrânea  abafava os sons. Alguns instantes depois uma porta lateral se abriu e eu estava olhando para uma pequena sala azul-marinho em que se sentavam cinco homens. Quando me viram, todos abaixaram as cabeças e permaneceram em silêncio, como se estivessem esperando por algo.

O menor, um personagem de meia-idade louro escuro com um rosto pálido e brilhante que parecia um pouco ruborizado, virou-se para a minha escolta.

"É ele?"

O chofer parecia assustado, hesitou, mas logo respondeu:

"Naturalmente".

O sujeito que fez a pergunta virou-se para mim e se aproximou até ficar cara a cara.

"Que dia é hoje?"

Eu respondi, desta vez corretamente, que era quarta-feira, e vi todo mundo se espantar. Por um momento pensei que estava cercado por lunáticos, mas, antes que eu tivesse tempo para me inquietar, o chofer atlético deu um passo adiante.

"Sr. Frazer - eu juro - disse sexta-feira. E estava segurando o New York Times, na esquina da quinta avenida".

"O que isso significa?" perguntou o rosto pálido. "De onde você é?"

"Chicago", respondi. "Agora, que tal a minha vez de fazer algumas perguntas
? Para quê esta convocação? E este passeio misterioso em elevador de carro?"

"Não se afobe", a voz gelada me cortou. "Não é a sua vez ainda. Antes, por que você disse a ele que era sexta-feira?"

Ocorreu-me que talvez eu estivesse lidando com excêntricos. A coisa deveria ser cooperativa e suave, eu li em algum lugar.

"Quando você pensa realmente sobre isso," comecei, "talvez seja realmente sexta-feira. Especialmente se você considerar o meridiano de Greenwich..."

"Pare com essa palhaçada, agora. Você tem a mensagem e os instrumentos?"

Fiquei mudo.

"Sim...", balbuciou o meu interrogador. "Bem, antes... antes... você vai ter que nos dizer quem te enviou. O que você esperava realizar. E quem lhe disse o que fazer para que você pudesse chegar aqui!"

No final ele estava quase sibilando, expondo os dentes, ainda mais brancos, ou melhor, mais pálidos que suas feições. Os outros ficaram imóveis, fixando-me com os olhos, nem ameaçadores, nem perturbados.
Aos poucos ficou claro para mim. Com certeza, esses não eram lunáticos. Não, o único lunático e idiota disparatado era eu e havia acabado de tropeçar em alguma conspiração vasta e sinistra.

"Cavalheiros", comecei, o meu tom jovial decididamente fora de lugar, mas prossegui, tentando olhá-los imperturbável. "Eu sou, isto é, era, um repórter do Chicago World... Por razões particulares, eu saí de lá um par de meses atrás... Eu estava procurando por um emprego, vim para Nova York. Estou aqui há algumas semanas, fazendo nada. E a maneira como eu cheguei aqui, permita-me dizer-lhes, foi estritamente acidental. Todo mundo tem o direito de possuir uma cópia do Times, não?"

"E responder à pergunta sobre o dia da semana ser sexta-feira, em vez de quarta... É isso mesmo?"

As palavras, pronunciadas pela primeira vez por um homem alto, magro, de óculos, me fez voltar-se para ele, mesmo tendo notado que a porta agora encontrava-se fechada. Contra ela inclinava-se o motorista do carro, seu rosto inexpressivo maciço como uma rocha. Sua figura preenchia completamente a saída de uma forma que não me agradou de todo. Ocorreu-me que não acreditavam em mim.

"Ouçam", comecei de novo "é apenas uma coincidência estúpida... Por favor, deixem-me ir embora... Eu não sei nada, não entendo absolutamente nada, nem sequer sei onde estou agora".

"É fato, você não entende nada",
disse lentamente o homem com o rosto pálido brilhante. "Mas você não pode sair daqui."

"Não agora? Então, quando?"

"Nunca".

Quando a palavra foi pronunciada, todos como que descontraíram. Estava acabado. Lentamente, ocupando o tempo, os outros quatro sentaram-se, acenderam seus cigarros em um pequeno candeeiro, enquanto eu os observava. Olhei com especial intensidade para seus movimentos, na sala iluminada, para o rosto do homem diante de mim, que me sentenciou. Deveria dizer alguma coisa? - pensei - pleitear, persuadir, entrar em detalhes? Explicar? Mas quando olhei para aqueles olhos de um azul pálido, como se esbranquiçados pela distância, entendi que as palavras seriam inúteis.

"Eu não entendo isto de jeito nenhum", eu disse, endireitando-me. Eu estava cansado e com fome. "Eu não sei por que deveria desaparecer. Ou para quê. Mas mesmo canibais alimentam suas vítimas... por favor. Estou com fome." Aproximei-me da mesa, tirei um cigarro do maço e o acendi no candeeiro.

Naquele momento, percebi que os homens entreolharam-se, depois, por sobre minha cabeça, para o sujeito que esteve me falando, como se fosse seu líder, e mais uma vez quedaram-se imóveis O chefe deu-me uma olhadela. Fingi indiferença. A porta ainda estava bloqueada pelo corpo maciço, cortando o acesso à maçaneta. Ele devia pesar uns 100 quilos e eu precisava dormir, descansar, me alimentar - resistência seria inútil.

"Por favor, dê-lhe algo para comer", falou o sujeito pálido "e cuide dele. E bem!"

Nesse momento, o corpulento chofer encolheu-se um pouco. Sem dizer nada, abriu a porta e acenou para mim.

"Boa noite, cavalheiros" eu disse, e o acompanhei.

A porta fechou-se batendo, e encontrei-me na penumbra do corredor.

No mesmo instante, fui tomado por duas mãos poderosas, houve apenas um clique, e senti o aço frio das algemas em meus pulsos.

"Então, é assim que você trata seus clientes?" Perguntei, sem levantar a minha voz.

O chofer e seu cúmplice, invisíveis na escuridão, não eram do tipo falador. Um deles revistou-me de forma eficiente e, não achando nada, deu-me um pequeno empurrão para a frente.

Achei que isso fora um convite para jantar. Após marcharmos na escuridão infernal por um bom minuto, meu guia parou tão de repente que quase bati num muro surgido do nada, aparecendo na frente do meu rosto. Um tinido maçante e as portas se abriram, um retângulo de luz.

A nova localidade parecia um cofre de banco, na verdade como se fosse a imagem de um cofre com todos os mistérios de um crime lido avidamente. Grandes portas de aço trovejaram atrás de mim e do meu acompanhante, afundando suas enormes garras nas ranhuras correspondentes do batente. A sala foi fortemente iluminada por uma lâmpada sem quebra-luz. Nas paredes,
tiras de  aço regularmente dispostas exibiam alças maciças e vários bloqueios. O único mobiliário que pude ver eram duas cadeiras baixas no piso de concreto ao lado de um tamborete de três pernas e uma mesa pequena. Estranhamente, tudo era feito de aço. Percebi isso quando o chofer empurrou o tamborete com sua perna, produzindo um som inconfundível.

Sentei-me, o chofer aproximou-se da mesa, levantou o tampo e tirou da gaveta exposta algumas latas de carne e um naco de pão branco comprido. Tirou do bolso um canivete imenso, selecionou a lâmina do seu agrado, fez uma abertura em uma das latas, depois com a mesma lâmina fatiou o pão. Por fim, ele apalpou os bolsos até encontrar a chave para as minhas algemas, uma vez que eu estava começando a me resignar com o fato de ser alimentado com as mãos atadas. Sentado na minha frente, seus olhos seguiram contemplativamente cada parte da refeição monótona, até que não houvesse mais nada na lata. Olhando para a lata seguinte - lagosta, e aprecio realmente lagosta - estendi minha mão: canivete. O rosto
maciço bronzeado do chofer esticou, provavelmente indicando um sorriso, em seguida, levantou a faca e abriu a lata ele mesmo. Tem medo de mim!, pensei com satisfação, uma vez que ele mediu por duas vezes o meu peso. Quando a segunda lata ficou vazia e limpa com crosta de pão, eu o encarei.

"Lei Seca"?

O motorista esticou novamente sua face, desta vez num gesto mais amplo, levantou o tampo da mesa e  retirou um frasco de
excelente conhaque. Pensei que ele faria as honras da casa, mas só retirou a rolha e colocou um copo na minha frente, que ignorei completamente. Uma boa dose de conhaque azeitaria minha máquina craniana. Parecia que eu estava em uma salmoura muito engraçada como um picles, e estava prestes a perguntar como eu poderia dormir um pouco neste hotel barato, quando um zumbido curto e baixo soou sobre a minha cabeça, repetido por três vezes. O chofer contraiu-se ligeiramente e disse:

"Vamos".

Hesitei, ele apenas recuou um passo e tocou num bolso suspeito acondicionado em suas calças.

"Nec Hercules", disse em voz alta, sorriu, e rendeu meus pulsos. Ele sorriu novamente, um pouco torto desta vez, abriu a porta e afundou na sopa preta do outro lado.

Devemos ter caminhado em outra direção para, em seguida, ele agarrar o meu braço e puxá-lo. Depois de um tempo, achei que estávamos prestes a descer um lance de escadas. Subimos. Logo fui capaz de detectar uma luz azul-clara que progressivamente se tornou mais intensa, em seguida um piso e um corredor amplo sem janelas iluminado por lâmpadas foscas quadradas embutidas nas paredes. O corredor terminava em uma porta tão larga quanto a distância entre as paredes. Quando alcançamos a porta, o motorista empurrou-me à frente. Ela abriu-se automaticamente, e igualmente fechou-se atrás de nós (ou atrás de mim).

Me encontrava em uma gigantesca biblioteca, esta foi minha primeira impressão. As paredes estavam cheias até o teto com livros. Havia escadas de livraria, mesas e luminárias, e no meio da sala uma pequena mesa redonda onde estavam sentados todos os sujeitos que eu já conhecia. Os óculos de quem havia falado comigo apenas uma vez, o sujeito alto e magro, grisalho em suas têmporas, brilhou em minha direção. Me aproximei.

"Estávamos falando sobre você", disse ele durante um tempo, devagar e silenciosamente. Parecia muito cansado. Me curvei um pouco e esperei. "Queremos acreditar em você... Nossas investigações mostram que, com toda probabilidade, você está dizendo a verdade..."

Fiquei boquiaberto, espantado. Que investigações? Estaria ele se referindo ao jantar
sem palavras com o chofer? Neste caso, avaliei, eles eram um bando patético. Parecia que eles não apreenderam minha perplexidade.

"Contra a sua vontade, você se meteu numa certa... em uma situação muito complexa." Podia-se ver que ele estava medindo cada palavra. "Uma coisa você precisa saber: você não pode deixar este lugar sendo a mesma pessoa que era antes."

Perspassou pela minha cabeça que talvez isto aqui fosse a sede de alguma
quadrilha fantasticamente sofisticada - ou talvez um comitê político - de fascistas ou algo parecido. Mas por que esses livros?

"Ou você nunca sairá, ou..." ele parou. Me olhou calmamente, mas eu podia sentir a tensão do mesmo jeito.

"Ou?" perguntei. E então para o sujeito que se manifestara antes: "Desculpe-me, você se importa
? Como vê, não posso usar minhas mãos, mas eu realmente gostaria de um cigarro."

Lentamente (o cara fazia tudo lentamente, era divertido e outras vezes assustador, ele era como um ator no palco), ele colocou um cigarro na minha boca e me deu um isqueiro. Pela segunda vez os outros trocaram olhares significativos.

"Ou você vai acabar com a gente", concluiu o homem de óculos. "E, a julgar pelas aparências, eu diria que é a maneira como vai ser."

"As aparências enganam." Eu também estava tentando falar mais devagar, não tanto para coincidir com o ritmo dele, mas para superar os vapores que, após o meu jejum prolongado, envolviam meu cérebro graças ao conhaque que eu tinha bebido durante o jantar. "Você pode me dizer o que é isso tudo?"

O homem pálido que, até aquele momento, permanecera em silêncio, levantou os olhos.

"Isso, é claro, você não pode saber" disse, num tom que soava quase apologético. Depois mais alto: "Mas por que se preocupar
? Seu trabalho é simples: fazer o que você disse e ficar calado."

Eu tenho que admitir, toda aquela conversa fez-me sentir-se estranho. Anteriormente, quando essas pessoas esquisitas me condenaram a desaparecer, ou em outras palavras, a morrer, eu estava ciente do desespero de minha situação, mas esta sequência de eventos encheu-me com força renovada. Contra a parede, um homem torna-se apático, indiferente. Mas dê-lhe o menor raio de esperança e sua força cresce a cem por um, os seus sentidos atingem níveis de pico e ele se transforma em um único músculo enrolado pronto para explodir em um esforço para salvar a própria vida. Isso é o que me aconteceu. Falando lentamente, em voz baixa, eu continuei a examinar ao meu redor, avaliando as distâncias pelos cantos dos olhos. Escapar...? Por que não? Nenhuma dúvida quanto a isso, era agora ou nunca. Eu poderia arrebatar o cinzeiro grande e arrancar a cabeça do chefe, mas isso seria estúpido. Melhor lançá-lo na grande luz elétrica que iluminava o salão. A questão era: havia apenas uma, ou mais lâmpadas dentro daquela esfera opaca? Tudo dependeria disso. E depois, lá estava a porta. A porta peculiar que abriu e fechou-se por si só. Minhas costas se voltaram contra ela, e eu não conseguiria nem dizer se ela possuía uma maçaneta.

"Você não deve fazer nenhuma pergunta" o homem com o rosto pálido e suado estava a falar sem pressa, com ênfase, retirando o cigarro de dentro do bloco ornamentado do cinzeiro de prata. Ele meneou uma nódoa invisível do punho da camisa e de súbito fitou-me com seus frios olhos azuis.

"Se você não se importa", eu sorri, encolhendo os ombros um pouco e arriscando uma espiadela pelo canto do meu olho. Maçaneta de aparência comum. "Parece-me, realmente deveríamos, em certo sentido..."

Um dos homens, que parecia totalmente desinteressado em nossa conversa, de repente, falou algumas palavras em uma língua desconhecida para mim. Elas soaram estranhamente guturais. Meu interlocutor se inclinou sobre a mesa e disse rapidamente e em tom baixo:

"Você concorda?"

"Com o quê?" Eu estava procurando ganhar tempo a todo custo.

"Você tem uma escolha, junte-se à nossa", ele hesitou (quase profissionais, pensei, isto não é uma gangue ou eles jamais agiriam assim) - "nossa organização, ou você se tornará inofensivo."

"Você quer dizer ficar refrigerado a baixa temperatura, não é mesmo?"

"Não", ele respondeu calmamente. "Não vamos matá-lo. Nós só vamos realizar uma pequena cirurgia que irá transformá-lo em um retardado mental, um idiota para o resto de sua vida."

"Tudo bem... E o que você quer que eu faça na 'organização'?"

"Nada de que você não seja capaz."

"Qualquer coisa contra a lei?"

"A lei de quem?"

Eu tropecei.

"O que você... a nossa, lei estadunidense...".

"Não há dúvida... de vez em quando", respondeu ele. Como se a um comando, todos eles sorriram levemente. Poderia-se dizer, máscaras de cera tornaram-se vivas por uma fração de segundo. Deliberadamente movi minha perna de tal sorte que, com um súbito torque, eu poderia chegar ao cinzeiro. Poderia arremesá-lo na lâmpada de mãos algemadas? Eu era um ginasta bastante bom. No mesmo instante o sujeito de óculos voltou-se para a espirradeira plantada em um
bonito vaso de jade ao lado da mesa e disse algumas palavras, nenhuma das quais foi audível. As portas se abriram para revelar o chofer, juntamente com seu cúmplice.

"Escoltem-no... para a cirurgia", ordenou o comandante. "E removam as algemas."

De Człowiek z Marsa. Copyright Stanislaw Lem. De acordo com o estado de Stanislaw Lem. Tradução para o inglês copyright 2009 por Peter Swirski. Todos os direitos reservados. Tradução para o português por Ricardo Reto, 2010.