sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Respeitável público!


Respeitável Público!

O povo da minha cidade é alegre, bem humorado. Mas antes de tudo, é um povo cordato. Tanto é verdade que a praça central, lá onde ficava o coreto, a igreja matriz - dedicada a Nossa Senhora dos Andarilhos das Meias Rotas - o comércio, e onde também girava a vida social de nossa gente, com os passeios das famílias aos sábados à tarde, os namoricos dos jovens à base de sorvetes de massa, as quermesses das festas juninas, as guirlandas com pequenas luzes coloridas enroladas nas árvores para o Natal, tudo foi demolido, arrancado e terraplanado para dar lugar a uma imensa lona de circo. Houve até um princípio de indignação, de estupefação pela audácia dos mambembes, mas tudo ficou em alguns muxoxos e um ou outro nhé-nhé-nhé. E só. Sim, nosso povo é muito cordato.
E desfalecido o espanto inicial, nasceu a curiosidade daquelas gentes a querer saber o que o circo teria a lhes oferecer. Mas o circo, logo descobriu-se, pouco oferecia, e qual não foi a nossa surpresa ao tomar conhecimento de que o comparecimento aos espetáculos, diários, era obrigatório e pago. Bem pago. Ainda assim, e apesar de comentarmos inconformados a má nova - alguns bradaram impropérios e houve até quem brandisse os punhos fechados contra essa arbitrariedade - em um ou dois dias (gente boa essa nossa) toda aquela imposição foi devidamente digerida e o bom humor, a alegria e a felicidade tornaram-se a tônica novamente.
Mas ainda não havia acabado, isto é que não senhoras e senhores! O cúmulo da audácia dos mambembes foi nos notificar que os artistas do circo seríamos nós mesmos, à exceção dos palhaços, que eram os donos daquela farra. Todos os dias, inexoravelmente, seriámos nós a fazer mágicas, todas incríveis, admito, mas fastidiosamente repetitivas. Seríamos também  os domadores de feras; muita gente lá teve a cabeça arrancada pelos leões e tigres, mas como eu comentei outrora, éramos assaz cordatos e tudo sempre acabava bem. A turba até aplaudia as feras, ao fazer de refeição um mal-ajambrado e azarado domador. Todos nós, sem exceção - veja que curioso, nem sabíamos disso! - nos descobrimos excelentes equilibristas, operávamos verdadeiros milagres nessas lutas contra as forças da gravidade nas cordas bambas sob as lonas lustrosas, ajeitando-se como podíamos nos monociclos, com dois elefantes dependurados, um em cada ombro, lançando aos ares os vinte e tantos malabares, argolas e outras bugigangas, e mordendo com a boca uma colher de café com um ovo de avestruz baloiçando na pequena concha do talher.
Como eu havia dito, os proprietários do circo eram os palhaços. Eram eles que determinavam o quê, o quando e o como. Recebíamos diariamente pelo correio correspondência contendo um panfleto com a descrição dos números que seriam apresentados naquele dia, quem operaria como platéia e quem seria o artista da vez. Num desses dias tive folga - como eram desejadas essas folgas! - e foi com satisfação que me encaminhei para o espetáculo daquela noite como parte dos espectadores. A apresentação e as vênias de praxe foram feitas pelo mestre-de-cerimônia: "Respeitável público!", que anunciou como primeiro número - era sempre o primeiro - a algazarra orgiástica dos palhaços. Iniciada a apresentação, atentei para algo que até então não havia notado: de todos os palhaços o mais sem graça, o mais simplório, aquele que notadamente não passava de um reles amador era, justamente, o Tiririca...

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